MRS. DELANEY, dos subúrbios de Nova York: - “Segurava um crucifixo e olhava pela janela, à espera de ver cair meteoros..."
MRS. JOSLIN, de uma cidade do leste: "Quando o locutor disse - Abandonem a cidade! - agarrei no meu filho e precipitei-me, pela escada abaixo”
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30 De Outubro de 1938,
Já devia estar habituada às típicas temperaturas de Outubro. Mas, naquela noite, o frio estava particularmente insuportável.
Lá fora, as árvores já não reagiam aos rumores do vento. Permaneciam incólumes, como se não quisessem responder a provocações. O vento detestava ser desprezado. Por isso voava pelas ruas mais sombrias da cidade, à procura de uns minutos de atenção e convicto de que o silêncio era um mero ruído de fundo, sem qualquer proficuidade.
As pessoas tinham medo. Não apenas dele, mas dos sons da noite. Das vozes anónimas e intemporais que o negrume do céu nunca quis esconder.
As pessoas tinham medo. Não apenas dele, mas dos sons da noite. Das vozes anónimas e intemporais que o negrume do céu nunca quis esconder.
Em Nova York faltavam cinco minutos para as 20 horas. Conseguia ouvir a mãe a chamá-la para mais uma emissão radiofónica, na voz do célebre locutor Orson Welles.
Nunca lhe achou muita piada. A típica entoação fictícia, que insistia em fazer transparecer e a ordenação lógica de um discurso, previamente construído, não a convencia. A uniformidade não era, definitivamente, uma característica evidente, num mundo em que as palavras estão a poucos segundos de serem convertidas em vazio constrangedor.
Naquela noite, foi diferente.
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Welles: "Sabemos que desde os primeiros anos do século XX o nosso mundo é observado meticulosamente por inteligências superiores às do homem, mas tão mortais quanto as dele. Com infinita complacência, o povo andou de um lado para outro sobre a Terra, na segurança do domínio que exerce sobre esse pequeno fragmento solar rodopiante que, por sorte ou desígnio, o homem herdou do negro mistério do tempo e do espaço. Entretanto, através do imenso e etéreo abismo, mentes que estão para as nossas, como estas estão para as dos animais selvagens, intelectos vastos mas frios e sem compaixão, contemplavam esta Terra com olhos cobiçosos, e fizeram planos contra nós".
"Senhoras e senhores" - dizia o locutor, num dos comunicados - "tenho uma grave declaração a fazer. (...) Sete mil homens armados com rifles e metralhadoras enfrentaram uma única máquina invasora de Marte. Apenas 120 sobreviveram. Os outros jazem na área da batalha."
Seguem-se relatos de novas batalhas, até o intervalo, quando o locutor informa:
"Estão a ouvir uma apresentação da CBS do Mercury Theatre de Orson Welles, numa dramatização de A Guerra dos Mundos, de H. G. Wells. O programa continuará após um breve intervalo. Aqui fala a Columbia Broadcasting System.."
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Estava positivamente surpreendida com a emissão daquela noite. Muito provavelmente, Orson Welles percebeu algumas das suas falhas, e decidiu dar um tom "mais real" ao seu discurso. Aliás, a julgar pela agitação que eclodiu repentinamente na rua, talvez arrisque em dizer que o realismo que Orson Welles imprimiu na emissão daquela noite, foi desmesuradamente inconsequente.
O pânico estava instalado e provocou não só acidentes em série, mas também prejuízos e suicídios. O abandono imediato das habitações e a fuga da cidade, foram duas das reacções da sociedade norte-americana.
Ao que parece, 50% dos ouvintes não percebeu que a emissão estava a ser teatralizada, pela voz surpreendentemente credível de Welles e, parte considerável do público, acreditou que a Terra estava a ser invadida por marcianos.
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"Aqui fala Orson Welles desprendido da personagem à qual deu voz, para vos assegurar que 'A Guerra dos Mundos' teve como principal objectivo oferecer-vos um bom divertimento para Domingo. (...) De modo que, adeus a todos e lembrem-se, amanhã e depois, da terrível lição que receberam esta noite. Este sorridente e globular invasor da sua sala de estar, é um habitante do país das abóboras. Se baterem à sua porta e não houver ninguém lá, não é nenhum marciano... É Halloween!"
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Há quem diga que o peso das palavras não se compara ao choque provocado pelas imagens.
Embora reconheça que há casos pontuais, em que as imagens valem por si, não posso deixar de considerar a evidente componente sinestésica associada ao discurso oral. A criatividade e a imaginação não só de quem fala, mas também de quem ouve, produzem efeitos absolutamente estrondosos, capazes de deturpar a realidade dos factos.
O caso da Guerra dos Mundos foi apenas um exemplo disso, e parece estar bem presente quando nos referimos ao reflexo subliminar que o som consegue provocar, através do realismo de uma narração dramatizada, em que o poder da palavra invisível é praticamente inquestionável.
Orson Welles - Cineasta, produtor e actor.