Um dia normal. As mesmas vozes, os mesmos gestos, as mesmas cores, numa paisagem incrivelmente assustadora e marcada por comportamentos previsíveis aos quais parece ser difícil renunciar.
Os olhares distantes reflectiam uma indiferença à qual já devia estar habituada.
“Take care of your belongings. Pay special attention when entering or leaving the train”.
Entrei no metro. Não havia sorrisos. Só pessoas ensimesmadas nos seus próprios pensamentos. Ao longe ecoava uma voz. Uma voz grave e rouca de um alguém qualquer, que aspirava por uma resposta anónima. “Vá lá, não é difícil. Afinal, que diferença faz uma moeda a menos na carteira de cada um?” A julgar pelo número de vezes que já o tinha ouvido, calculo que pensasse algo do género.
Ele e tantos outros que por ali passavam, com uma bengala branca, metade de uma garrafa de plástico com umas quantas moedas no fundo e um pedido informal, formatado para um fim específico.
Na maioria das vezes, a reacção consensual passava por uma atitude de desprezo que, confesso, sempre me causou um certo desconforto. Mais tarde percebi que não restavam grandes alternativas e que era difícil agir de outra maneira.
Curiosamente, hoje foi diferente. As pessoas pareciam estranhamente solidárias e o homem da bengala branca não poupava esforços na voz para fazer valer a sua causa. Mas que causa será esta? A sobrevivência? Se assim for, é nosso dever suportar os custos que essa causa implica?
Por sinal, tinha a meu lado um senhor que, muito provavelmente devia ser dotado de um qualquer “poder da mente”, que nunca vou saber precisar. A verdade é que o seu sentido de oportunidade foi inquestionável e as oito palavras que me dirigiu foram, no mínimo, certeiras:
O pior cego é aquele que não quer ver.
Não soube bem que sentido dar ao habitual cliché que estava cansada de ouvir e fiquei sem perceber, se devia atribuir a toda esta situação uma componente emocional, ou limitar-me ao relato de um episódio, que poderia provocar admiração numa escala puramente intelectual.
Lembro-me que, na altura, respondi com o típico compasso de silêncio. Não havia muito a dizer. Aliás, a minha expressão facial já era, por si, reveladora.
Não sabia o que pensar. Nem sabia se a ausência de um gesto poderia ser definida como correcta ou incorrecta. Afinal, o que é o certo e o errado? Ok: já sei que fomos nós (seres humanos) que definimos isso. Mas como podemos estar tão presunçosamente confiantes de que essa foi a melhor opção?
Mais uma vez, não tenho resposta para as questões que fiz.
À parte isso, é um facto que os indivíduos portadores de cegueira, são diariamente confrontados com determinadas limitações que reivindicam a existência de meios que os auxiliem. O problema é que, actualmente, essa ajuda ainda não foi devidamente desenvolvida.
O homem da bengala branca foi apenas um dos casos que decidi expôr aqui. Mas há vários.
Os recursos que a sociedade dispõe são mínimos e as pessoas que possuem esta incapacidade, nunca conseguem ser verdadeiramente independentes.
Atentemos, por exemplo, no facto de um cego querer ir a um supermercado. Distinguir um pacote de bolachas de morango de um de chocolate, é uma tarefa fácil para qualquer um de nós. Mas para um cego: se os dois pacotes não estiverem escritos em Braille, essa diferenciação será completamente impossível. O mesmo se aplica aos cartazes informativos, à existência de semáforos que não estão devidamente sonorizados, às informações expostas em placas, com os nomes das ruas, etc.
Reconheço que a incapacidade sensorial, que caracteriza todo o tipo de pessoas com deficiência visual, deve ser lembrada e não esquecida pela sociedade. Afinal, falamos de pessoas que partilham os mesmos direitos e deveres que qualquer um de nós (independentemente da relatividade subjacente aos conceitos de “direito” e de “dever”).
Será que o Estado decidiu fechar os olhos ao branco das bengalas para dar voz à frase: “O pior cego é aquele que não quer ver?”
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