quinta-feira, 29 de dezembro de 2011

Incompletude Humana

As aspirações humanas são previsivelmente consensuais:
«Até posso não TER uma pessoa ao meu lado, mas tenho estabilidade económica»
«Até posso não TER uma vida financeira abastada, mas tenho uma família que me faz feliz»
«Até posso não TER um único tostão e conviver diariamente com a solidão, mas pelo menos tenho saúde»
Três frases típicas, que retratam o repositório de ilusões, de quem mergulha num mundo onde a tangibilidade do Ter supera a relatividade do Ser.
Dinheiro, Amor e Saúde – três condições, que sempre se mostraram intrinsecamente associadas à existência de um ser humano insatisfeito. As necessidades biológicas, não vão deixar de existir e precisam de ser supridas. Contraditoriamente, os estilos de vida, as imagens e as emoções decorrentes do processo de produção e de consumo, são relativamente dispensáveis, quando se destaca o valor moral, em detrimento de tudo aquilo que é unicamente material.
Não estou a menosprezar factores como o dinheiro, o amor ou a saúde, quando também eles podem e devem ser considerados, numa lógica de satisfação de necessidades distintas. Estou a apenas a relegá-los para uma esfera de consideração, que não lhes dá espaço para que se assumam enquanto factores determinantes por excelência.
Numa fase inicial, a concretização por se ter uma vida material bem sucedida parece ser suficiente e a curto prazo compensatória. Mas e quando essa espécie de concretização, se transforma em frustração? Será que há espaço para deixar que o Ser sucumba uma qualquer doutrina material, num processo de construção pessoal gradual?
Será o homem capaz de se deixar SER, ao invés de apenas TER?

terça-feira, 27 de dezembro de 2011

Gente Perdida




O chão. Eternamente seguro. Terrivelmente confortável. Frio e quente. Onde se cruzam as pegadas de um percurso indefinido.


«Vem comigo. Anda. Dá-me a tua mão. Deixa-me mostrar-te o caminho certo»







Perdia-se vezes sem conta. Investia em viagens sem retorno, que já só existiam no mundo dos sonhos fugazes. Aqueles, que se desfazem em mil pedaços, quando encontram solo firme.
Temia ser encontrado. Por isso abraçava o próprio corpo, na incongruência de uma força desmedida.
*
«Pediu-me que lhe levasse o medo»
Há anos que preservava a mesma postura. De óculos escuros, Pedro esconde o olhar enigmático que o mundo nunca viu. A voz quente segreda ao ouvido de quem se deixa cercar ao som das estórias. Estórias de gente perdida.

sexta-feira, 16 de dezembro de 2011

À Margem das Emoções - 8ª Parte

Pedro está hoje inserido no Projecto Vida – Emprego, promovido pelo IDT.
Embora não trabalhe há oito anos, espera inverter esta situação em Janeiro de 2012. Ter um emprego estável, uma casa própria e tirar a carta de condução, são algumas das aspirações que conta ver concretizadas no próximo ano.
As mãos pousadas sobre as pernas, e o tronco encostado sobre a cadeira de madeira deslindam agora uma postura relaxada.
Descansa o olhar no outro lado do mundo. Lá fora o som dos aviões é intenso. Pedro sorri. Desabotoa os punhos de uma camisa branca e mostra o braço tatuado. Por cima dos evidentes sinais de consumo, está desenhada uma cruz. Na subtileza de um gesto singular, passa os dedos pelas marcas. Sente as memórias do passado e de olhos postos no vazio afirma: «É a toxicodependência. A cruz da minha vida».
---

Esta publicação está inserida na sequência da reportagem sobre Toxicodependência – À Margem das Emoções. Para regressar à primeira publicação, clique aqui.
Para ouvir o suporte sonoro desta reportagem, clique aqui

À Margem das Emoções - 7ª Parte

«As pessoas recaem. Faz parte da história natural da toxicodependência».
Num tom de voz realista, António Costa encara a ‘recaída’ como parte do processo terapêutico. «Não é uma situação para dramatizar. É uma situação para procurar não repetir», reforça.

Um processo de tratamento geralmente longo, e caracterizado por um modelo integrado de intervenção, mostra ter recursos terapêuticos activos.



De acordo com um dos coordenadores do Centro das Taipas, a função dos terapeutas passa por pegar nos utentes com períodos de consumo longos e de abstinência curtos, para convertê-los em períodos de consumo curtos e de abstinência longos.
«Ninguém consegue deixar de consumir por ninguém. Os técnicos de saúde dão a ajuda necessária para que o processo de tratamento ocorra, mas o esforço por parte do utente é essencial.»
*
O recurso à psicóloga, que o acompanhou no Centro de dia do IDT, marcou o início de um novo projecto terapêutico. Uma nova aliança.
Virar a página e seguir em frente, foi o desafio a que se propôs. O olhar é agora confiante. A voz grave e baixa pondera a percepção realista de um homem marcado. «Não sou o Super-Homem, nem nunca hei-de ser. Mas sei que não quero a droga na minha vida. O tempo é o melhor remédio».
Ainda que o tempo seja um factor preponderante na recuperação de qualquer toxicodependente, também a sociedade tem um papel decisivo num processo de reinserção social. «A toxicodependência continua a ter um rótulo. Dou por mim a omitir o meu passado para conseguir um emprego».
*
Os toxicodependentes continuam a ser rotulados pela sociedade, embora não sejam vistos como há vinte anos atrás. «Já não é o assaltante da seringa, o ladrão, a pessoa que pode transmitir doenças e que tem uns hábitos esquisitos que podem constituir um perigo para os nossos filhos».
A diminuição da incidência sobre os novos casos, o controlo das doenças associadas à toxicodependência e a diminuição da criminalidade, com instituições que inibem o recurso a subterfúgios ilícitos, representam alguns dos factores que justificam a nova percepção social, que gira em torno desta questão.
António Costa confirma, que hoje a toxicodependência é considerada um problema de saúde mental, que pode ser assistido, recuperado e que não tem que constituir um risco para a sociedade. «Os toxicodependentes são pessoas que deram um passo errado na vida», remata.
(...)

À Margem das Emoções - 6ª Parte

Reconhecer as emoções. Voltar a sentir. Um processo complicado, num percurso onde os obstáculos cresciam de dia para dia.
«Não dei tempo ao tempo para viver. Vivi como sabia».
Depois de oito anos sem consumir e temporariamente afastado do IDT, Pedro recorda aquela que foi a sua terceira recaída.
Com as emoções à flor da pele, encontrou na droga o ponto de abrigo para colmatar a morte da própria tia.
Os olhos castanhos estão agora embrulhados. As lágrimas percorrem o rosto numa marcha lenta que não quer terminar.
«Nunca tinha visto uma pessoa a morrer à minha frente. Ainda tive sangue frio para a esticar no chão. Peguei nela, já cadáver e meti-a em cima da cama da minha mãe. Fechei a porta. Fui à carteira e como em frente à minha casa vendem droga, foi só atravessar a avenida e vir para casa consumir. Consumi ao lado dela, já morta. Fiquei bloqueado. Só pensava numa coisa: eu tenho que tapar isto. Quando liguei para a ambulância já tinha passado uma hora e meia».
Ainda que mostre estar consciente dos efeitos que a droga pode causar, Pedro não deixa de admitir a possibilidade de uma nova recaída. «Estive oito anos bem e caí. Quem é que me garante que isso não volta acontecer?» Levanta o olhar. Permite-se olhar o céu cinzento, para depois segredar «Já sei o que vem do outro lado. Não vem nada de bom».
(...)

À Margem das Emoções - 5ª Parte

A metadona tem um efeito de opióide positivo, uma vez prescrito numa dose adequada, e mantém a pessoa sem necessidade de consumir heroína e capaz de desenvolver a sua vida normalmente. Ainda que numa fase inicial, a pessoa experimente uma sensação de libertação, relativamente a um ciclo diário de consumo, numa fase posterior essa libertação poderá transformar-se numa prisão.
António Costa frisa não ser bom que os utentes tenham que tomar um opióide de substituição: «A metadona é um opióide tal como a heroína. As pessoas que o administram ficam dependentes dele, ainda que sejam capazes de viver a sua vida. Há pessoas que poderão ficar a vida toda a tomar aquilo, outras que tomarão durante um tempo limitado».
A utilização da metadona pode ou não ser necessária, de acordo com o modelo integrado de intervenção de cada doente. A pessoa que decide fazer um tratamento deste género, está integrada noutros recursos terapêuticos, dos quais se destaca a relação com o terapeuta. «É da relação que se passa para a aliança terapêutica e da aliança terapêutica para o projecto terapêutico, que será revisto ao longo do tempo, de acordo com as necessidades do utente», declara António Costa.
(...)

À Margem das Emoções - 4ª Parte

Depois de três anos a consumir droga com a mesma fonte de rendimento, Pedro despede-se de um emprego que já tinha como estável. Aos dezoito anos começa a arrumar carros, para alimentar uma dependência contínua, que se prolongou até aos vinte e cinco anos de idade.
«A minha mãe não podia sustentar um vício que era meu», reconhece. «Só a arrumar carros, conseguia cerca de trezentos euros por dia. A minha mãe costuma dizer que eu tenho um BMW num braço e um prédio de luxo no outro», confirma entre risos discretos.

Os sete anos que se seguiram fizeram da rua a única morada que tinha como certa e da heroína a sua melhor amiga. Pedro trabalhava todos os dias, sem abrir excepção a qualquer data. «Não havia Natal. Para mim era tudo igual».
Entre seringas deixadas numa cama por fazer e os comportamentos manipulativos de um filho que já não conhecia, a mãe de Pedro já não tinha dúvidas quanto à sua doença.
Com o passar do tempo a heroína deixou de ser suficiente e aos dezanove anos iniciou o consumo de cocaína – a droga que o deixava extasiado.
Deixou o medo em parte incerta e viveu a vida na eminência de um perigo evidente.
«Brinquei com a vida», recorda. Estava perdido. Vagueava entre a certeza de ter que deixar a droga e ausência de forças para o fazer. Tentou o suicídio. «Senti que era um peso para a minha família», confessou.
Com o aparecimento da EMEL, a profissão que adoptou mostrou ter os dias contados. Dividir os seus dias em deslocações entre a sua casa e o parque de estacionamento onde trabalhava, tornou-se cada vez menos rentável. Foi nessa altura que admitiu a possibilidade de um tratamento. «Ou vou roubar, ou tenho que me ir tratar», afirma.
Com vinte e cinco anos, Pedro deu os primeiros passos na direcção certa, decidido a expulsar a droga da sua vida. O passado que trazia consigo foi um dos factores que dificultou os primeiros tempos de um tratamento que não foi fácil. «Eu vinha de um ambiente complicado. Do salve-se quem puder. No mundo da droga não há amigos. A única amiga é a heroína».
Ao contrário de alguns dos seus colegas, Pedro fez o seu tratamento na ausência de metadona – um analgésico da classe dos narcóticos, que reduz os sintomas de dor neuropática, numa fase de abstinência. «Largar a droga não custa. O que custa é voltar a sentir as emoções. Viver a vida». Assevera, sem queixume na voz, para depois acrescentar: «Senti a minha “ressaca” na pele. Foi uma grande luta».
(...)

À Margem das Emoções - 3ª Parte

Ainda que numa fase inicial, o consumo de substâncias psicoactivas, possa ser considerado através de uma abordagem psicanalítica, na medida em que a dependência é vista como sintoma de um conflito psicológico subjacente ou de uma personalidade previamente vulnerável, numa fase posterior da dependência, o problema revela contornos distintos.
Num dos gabinetes do Centro de Dia, do Parque de Saúde de Lisboa, o ambiente é tranquilo. Sentado num dos sofás do mesmo gabinete está António Costa - Coordenador do grupo de trabalho, relativo ao Consumo de Substâncias Psicoactivas e Comorbilidades Psiquiátricas, do Centro das Taipas, em Lisboa.
De olhos postos num copo com café, António Costa explica que as características psicológicas de uma determinada pessoa, poderão conduzir ao desejo de experimentar uma substância psicoactiva. No entanto, numa fase de dependência, o consumo deixa de estar associado a uma necessidade psicológica, para passar a ser uma necessidade física.
«Um cérebro que se habitua a funcionar com a heroína, por exemplo, quando ela lhe falta, ele grita dizendo – ‘Dá-me que eu preciso dela!’ – O corpo pede aos gritos e isso traduz um desejo imperioso de consumir.»

À Margem das Emoções - 2ª Parte





De mãos pousadas sobre uma mesa de madeira, Pedro volta a ser a criança de outrora. De passagem, consegue recordar todos os momentos. Mesmo aqueles, que permanecem fechados a sete chaves.
O olhar vazio esconde a história de um menino, que cresceu sem o amor de um pai alcoólico, que só viu três vezes. Entregue aos cuidados da mãe e do avô materno, cedo percebeu o ambiente violento a que foi submetido.





A alteração temporária de percepções de risco, sob o efeito do álcool, foi evidente e cedo culminou em investidas físicas difíceis de esquecer.
«Se ainda estou cá, posso agradecer a uma vizinha, que me salvou. Tinha cinco anos. O meu avô chegou a casa completamente bêbado e apertou-me o pescoço, até eu ficar sem cor».
As agressões deixaram marcas que o tempo não apagou. Ainda assim, Pedro reconhece no avô o pai que nunca teve, e preserva os bons momentos de uma relação que ainda existe.
O olhar pensativo descansa nas mãos grandes e grossas.
Tem sete anos de idade. Uma caixa de comprimidos vazia, reflectida no espelho da casa de banho, parece patentear o pior. «Foi dramático. Na altura em que eu precisava mais dela…», conta. Na obtusidade de um sopro, revive a tentativa de suicídio, por parte da Mãe, depois da discussão acesa que teve com o pai.
Virou a página mais uma vez e desejou o alento do amanhã promissor.
Pedro era um menino extrovertido e de palavras fáceis. No seu mundo de gestos ousados, não havia espaço para restrições. «Não tinha quaisquer limites. Faltava-me a mão de um pai».
Aos seis anos de idade começou a fumar e aos onze anos deixou a escola para começar a trabalhar como ajudante de camionista.
De semblante fechado, Pedro desembarga a voz para contar a experiência que definiu os tempos que se seguiram. Com doze anos de idade experimentou uma droga, que só mais tarde veio a saber que era heroína.
Curiosidade foi o motivo que o levou a consumir pela segunda vez, para depois mergulhar num mundo, onde os problemas eram mitos ausentes.
«Porque não? Estava relaxado. Estava-se bem.»
Durante cinco meses, o consumo sempre foi gratuito e feito através de amigos. Estava longe de admitir a possibilidade de se encontrar dependente de uma substância. Foi o sintoma de uma suposta constipação, que o fez perceber que estava a ‘ressacar’ de um opióide, que precisava de voltar a consumir – a heroína.
Aos quinze anos Pedro já consumia diariamente e suportar um emprego tornou-se cada vez mais complicado. «Quando tinha droga ia trabalhar. Quando não tinha, não ia», confessa resignado.
(...)

À Margem das Emoções - 1ª Parte

Os olhares desatentos vagueiam sem destino. Percorrem o chão e desenham o trajecto de um rumo incerto. Entre palavras e gestos discordantes, os utentes do pólo Júlio de Matos, do Parque de Saúde de Lisboa, vivem mais um dia.
No Pavilhão nº 27 do mesmo Parque, é o Centro de Dia do Instituto da Droga e da Toxicodependência (IDT). O refúgio daqueles que perderam o chão.
Sentado nas escadas que dão acesso ao pavilhão, está um homem mergulhado numa viagem sem regresso. Os olhos postos na escadaria de pedra, não se deixam perceber. Demora-se entre breves travos, para depois se despedir de um cigarro, já quase sem vida. Os dedos amarelos contam anos de um vício que não soube controlar.
«Tenho que ir» - murmura e desaparece por entre as sombras imprecisas do seu próprio corpo.
No interior do Centro de Dia, o ar é abafado. Denuncia o peso das histórias. Os capítulos de um passado, que insiste em fazer-se presente, com todos os fantasmas de uma adolescência mal sentida.
No piso de cima, o ambiente é descontraído. Numa das mesas, ao fundo da sala, três utentes baralham as cartas e ditam as regras do seu próprio jogo. O jogo da vida.
(...)

A Toxicodependência - Introdução

A toxicodependência – uma “realidade escondida e dinâmica”.
Ainda que as últimas estatísticas não sejam alarmantes, o consumo de drogas continua a ser problemático e a intervenção no domínio das toxicodependências, é cada vez mais complexa. O estado de saúde físico e psicológico dos consumidores, as idades de início de consumo, a frequência, a quantidade e a duração do seu uso são alguns dos factores, que justificam os danos associados ao consumo de substâncias psicotrópicas.
De acordo com os resultados de um estudo, destinado a acompanhar a evolução de substâncias psicoactivas, nos grupos etários dos 13 aos 18 anos, o balanço global aponta para a necessidade de se investir numa prevenção de consumos, relativamente à experimentação de drogas estimulantes. O estudo foi divulgado a 16 de Novembro de 2011 e está enquadrado no ESPAD - European School Survey on Alcohol and other Drugs.
Pedro tem hoje 37 anos e foi consumidor de heroína e cocaína durante treze anos consecutivos. Inverter o trajecto de uma vida sem sentido foi o desafio a que se propôs, ao iniciar um tratamento marcado por avanços e recuos.

Para ouvir o suporte sonoro desta reportagem, clique aqui .

sexta-feira, 9 de dezembro de 2011

Notion Dance Fiction


Desta vez, as luzes não se apagaram.
Os olhares de um público sedento procuram um estímulo. Um ímpeto sonoro, capaz de quebrar aquele silêncio. De repente: dois corpos. Duas vozes. A atenção tomou lugar no canto lateral esquerdo,do palco principal do Teatro de São Luíz. O lado onde as conexões conceptuais de uma mente, ameaçavam contagiar a influência tecnológica do corpo.
Foi entre risos e palavras cambiadas que Ka Fai Choy apresentou Notion Dance Fiction. Uma performance baseada numa investigação inovadora, em torno da memória muscular digital.
Mas, poderá a subjectividade de uma memória corporal ser resumida à materialização de uma memória colectiva? Poderão os estímulos involuntários estar na origem de uma representação material, daquilo que poderá vir a ser uma subjectividade pós-moderna?
Através da apresentação de movimentos icónicos de dança do século XX, Ka Fai Choy manipula os grupos musculares em actividade, cria movimentos artificiais involuntários e controla, em tempo real, o corpo de uma bailarina dominada por estímulos eléctricos.
Aprender, adaptar e recriar. Três desafios, que se assumem perante uma das personagens dispostas no centro daquele palco.
Transportada para o espaço ténue do tempo futuro, a bailarina deixa-se projectar na sombra de um passado, e dá sentido à multiplicidade de movimentos reproduzidos, num processo involuntário que o corpo já não pode memorizar.

quinta-feira, 8 de dezembro de 2011

Que Espaço de Arte?

«Estou cansado de me sentar numa cadeira e ver sempre o mesmo palco à minha frente»

Ao reconhecer no mundo actual um repositório de estratégias ancestrais, que não estimulam o pensamento, nem o distanciamento crítico da realidade, o coreógrafo ressalta a necessidade de um Espaço que não condicione a experiência teatral: «Em pleno século XXI, o espaço teatral de referência continua a ser um teatro à italiana».
O tom de voz legitima uma indignação premente, que se estende à percepção de um palco, que define como sendo «um espaço virgem», que merece ser convertido numa paisagem vibrante e aberta à contemporaneidade.
Perante a questão de um espaço, que considera estar «mal resolvida», Rui Horta confessa contaminar as suas criações com conceitos sui generis, que «mudam a forma como as pessoas vêem o que vêem». Ainda que, numa fase inicial o público mostre alguma estranheza, «rapidamente encontra o espaço onde se sente bem».
Numa declarada reflexão referente à criação de novos públicos, como factor catalisador numa sociedade que precisa de abrir horizontes, Rui Horta destaca a necessidade de um público emancipado, e afirma ser «extraordinária a existência de criadores que consigam respeitar o lugar do espectador, que não imponham as suas obras mas que as consigam negociar com o público.»
«Acredito que neste espaço podem existir respostas e iluminações. Acredito que o Homem se revela na dúvida e no espaço da transgressão
Rui Horta

Percepção Performativa

Por entre risos e olhares introspectivos, Rui Horta partilha no Teatro de São Luiz, alguns dos pilares edificadores de uma arte que abraçou, ao longo de grande parte da sua vida.
Sem deixar de lado a alma de um arquitecto, que cria luz num palco onde o cruzamento de linguagens cénicas e espaciais é indeclinável, Rui Horta afirma ser importante recusar um certo niilismo e «levantar a cabeça para o céu».
Abrir horizontes é a premissa de um discurso basilar, que premeia a reconstrução de um pensamento contaminado e adormecido na esfera de uma sociedade, em que o espírito crítico e a criatividade são relegados para segundo plano.
(...)

Para ouvir o suporte sonoro desta entrevista, clique aqui.

segunda-feira, 5 de dezembro de 2011

Back


A duas cores. Num movimento flutuante, o corpo transita entre o tudo e o nada. A duas cores. O som do vento é ainda fraco mas evidente. Não existem traços faciais. A juventude desaparece por detrás de um capelo onde o mistério toca os limites do desconhecido. A duas cores.

Seis mãos tocam a terra. Deixam-se ficar. Pressentem o movimento giratório dos moinhos de vento. Ouvem a voz do tempo. Descodificam a sua mensagem.
Permitem-se contagiar pela atmosfera dos sentidos, e transferem os movimentos corporais para o lado doce da inconsciência.

«É hora de fugir» - segredam em concordância, sem deixarem de renunciar à liberdade individual de escolha.

As personagens multiplicam-se num espaço onde não existe a cor da diferença. O tempo passa por elas e não conta nada de novo. Cumpre-se o destino da existência, por entre as sombras de quatro moinhos de vento infatigáveis.

O anos passaram. É tempo de encontrar um chão. Um chão que não abra mão do seu próprio espaço, nem se deixe consumir por moinhos de vento.
*Back - Um trailer de Vicent Gisbert Soler. Para ver este trailer, clique aqui.

domingo, 4 de dezembro de 2011

Quadratura do Espaço Curvo


Quadratura do Espaço Curvo foi uma das exibições, que marcou um dos dias do Festival In Shadow e que teve lugar no Teatro do Bairro, em Lisboa.
Pedro Ramos foi o protagonista deste Solo Shadow e, numa breve entrevista, aborda o tempo e o espaço enquanto vectores que moldam a existência humana.

«Onde é que eu me situo enquanto indivíduo, no espaço e no tempo?»

«O interessante do nosso tempo, é que as coisas são destituídas daquilo que é convencional, para estarem em espaços ambíguos.»

«O tempo e o espaço são entidades abstractas que não existem realmente. Existem porque nós as inventámos»

Para ouvir o suporte áudio desta entrevista clique aqui .

Espelho Mirror - 2ª Parte

Mil e um movimentos, mil e um comportamentos discordantes, mil e uma simulações despersonalizadas.
No ecrã são projectadas as imagens dos seus três heterónimos.

«Não quero que os heterónimos venham porque vou pensar neles. Quero ir buscá-los Lá. Quero a verdade deles».

Num movimento incisivo, apaga cada vela delicadamente acesa, para depois derramar a cera pelo corpo frio e deixar que se entranhe na pele.
Desprovido dos emblemáticos preceitos de uma sociedade tradicional, Bruno Rodrigues dá corpo a três heterónimos, que espelham a versatilidade de uma personalidade que nunca muda, «às vezes é obscura».

«Gosto de ser eu próprio com todas estas facetas (…) Não ter heterónimos durante vinte e quatro horas deve ser uma tristeza. Vinte e quatro horas é muito tempo»
 
À margem da autocontemplação, Bruno deixa de lado o espelho, enquanto acessório meramente ilustrativo, e procura o rumo do seu "eu", em efémeros momentos de reflexão.

Anos e anos do que não foi eu | Vivi recluso no ser que era o meu. | Anos e anos de quem nunca fui | Vivi submisso do meu ser que flui. FP


Conhecer o universo de comportamentos, que fervilham no interior de um ser sem destino, é um dos propósitos dos homens estranhos que estão agora em pleno palco, no Teatro do Bairro, a apagar velas transitoriamente acesas.

Espelho Mirror - 1ª Parte

«Yes I confess»A voz grave é assertiva e cruza gritos de sofrimento evidentes, com o choro de uma criança estranhamente dominada por heterónimos que precisa de usar. São seguramente, a sua ferramenta de sobrevivência.

Na tenacidade de um movimento intencional, faz uma vénia solene aos livros arrojados no chão escuro e empoeirado.
Bruno está deitado num chão que não dá espaço à incerteza dos traços. Os traços de uma personalidade multifacetada.

Naquele palco não são necessários mais adereços. Chegam os livros dispostos no chão e as velas acesas, no lado oposto da sabedoria oculta.
Com a ajuda dos braços recua dois passos, sempre sentado. O mundo desabou na história dos livros, nos quais sempre acreditou.

O olhar mostra desespero. Ao longe soam conversas segredadas. Murmúrios desconfortáveis.

Salta de livro em livro e pisa a sabedoria sem arrependimento, como se fizesse parte do seu caminho.
Já descalço, caminha em direcção às páginas do tempo.
Sorri para quem o vê. A luz ainda existe.

sábado, 3 de dezembro de 2011

Crescer - Para quê?

O regresso ao passado. A eterna metástase da metanóia – um período de alterações estruturais profundas e de questionamentos, sobre os sentidos da vida. Sentidos que continuam a ser transferidos para segundo plano, como se a sua importância fosse ridiculamente irrisória.
A crise de meia-idade masculina foi o tema abordado, no documentário Quarantaine e justifica algumas das atitudes psíquicas, frequentemente censuradas pela sociedade.
O processo de desenvolvimento masculino ocorre num plano simbólico, o que significa que não há garantias relativamente àquilo que vai acontecer no futuro.
A “não-aceitação” desse processo torna-se constante e só é percebida enquanto tal, anos mais tarde. Nesta fase, a renúncia ao passado torna-se forçosa. Libertadora, se quiserem.
Esta é uma crise que, ao contrário do que acontece com as mulheres, na menopausa, não tem necessariamente que estar associada a uma disfunção hormonal. Para muitos cientistas, a origem filosófica e psíquica deste tipo de conflitos, é absolutamente inegável.


sexta-feira, 2 de dezembro de 2011

Quarantaine - 3ª Parte

Quarantaine é um filme de Marlene Millar e Philip Szporer, lançado no final de 2009. A dupla fundou a produtora de cinema Mouvement Perpétuel, especializada em documentários sobre as artes.
Com 48 minutos de duração, Quarantaine reúne dança, música, animação e documentário, contando com um elenco composto por Marc Béland, Marc Daigle, Benôit Lachambre e Ken Roy. Neste documentário, os protagonistas reflectem sobre uma juventude apagada, sem deixarem de patentear os seus sonhos, esperanças, lamentos e obsessões.
*
Os olhos azuis recebiam o mundo. O cabelo castanho-escuro era fino e estendia-se num movimento austero até ao fim das costas. A expressividade corporal de Benôit Lachambre transmitiu uma segurança indiscutível, mas os lábios finos rasgaram um sorriso vacilante.
Imobilizou o olhar. Engoliu em seco, e mais tarde confessou com a voz embargada:
«Quando era criança tinha medo de estar sozinho».

Quarantaine - 2ª Parte

Quatro homens. Oito pés confiantes. Um chão frágil e gasto, pintado pelo olhar polido de sonhos vãos.
«Tenho medo da intimidade» – acrescentou sem pudores, Ken Roy.
Preservava o seu espaço. Negava várias vezes um envelhecimento inevitável. Mostrava uma dependência emocional que não se atrevia a explicar. Sentia uma atracção questionável por mulheres mais novas. Procurava colmatar uma juventude que já não tinha, com o desenvolvimento de relações fugazes.

A síndrome de Peter Pan não podia fazer mais sentido. Ainda assim, fugia.
Por entre a raiva de um silêncio constrangedor, dava lugar ao vazio. Preenchia-o na proficiência dos gestos que já conhecia.
Dançava. Expressava o corpo numa mescla de movimentos equilibrados, e agarrava os fragmentos de uma consciência passada, ainda por construir.

Quarantaine - 1ª Parte

E se as fragilidades pudessem ficar acorrentadas na mais remota infância?
Na escuridão. A sombra. Os pés. Os gestos seguros escondem a fragilidade de um homem consumido no abraço da idade.
Os movimentos infiéis balançam entre o certo e o incerto. Soltam-se e protagonizam o espaço feroz da mutabilidade. As deslocações circulares mostram os traços de um homem com uma criança ao colo. Uma criança embalada na sombra de um futuro distante.
E se o tempo pudesse parar?
Os anos passaram. Não esperaram. Não conservaram. Mostram agora mil e uma passagens, de uma vida resumida a breves sulcos de viagens e regressos.
E se o medo fosse um mito?
«Tenho medo» – confessou Marc Béland, por entre gargalhadas indiscretas, que escondiam os seus 40 anos de idade.

quinta-feira, 1 de dezembro de 2011

Olhar (N) a Sombra

O olhar era trémulo. Desarmado. Oscilava entre o vazio e o retrato das fisionomias irregulares que o rodeavam.
Deixou o cansaço trancado em casa e partilhou na Pickpocket Gallery o segredo do seu olhar. Um olhar que desmonta expressões corporais, e que constrói interpretações espontâneas de um universo fotográfico singular.
*
Cláudio Ferreira tem 37 anos e traz o poder do olhar, na sombra corporal de um Alguém em permanente contacto com a tecnologia.
Num envolvimento intenso com todo o making off, da segunda edição do Festival In Shadow, Cláudio criou atmosferas marcadamente densas em que a presença da tecnologia foi imprescindível.
As imagens em exposição, na Pickpocket Gallery, retratam sensibilidades que procuram uma liberdade provisória, no rasto de uma luz que se pode tocar.
Sem nunca descurar o corpo como pilar edificador de espaços desiguais, Cláudio Ferreira assinou um contrato a termo incerto com o tempo, e congelou cada instante decisivo nos espectáculos, que integraram a segunda edição do Festival In Shadow.
O contacto com pessoas interessantes e a possibilidade de usufruir de uma aprendizagem singular, foram duas das retribuições, que hoje recorda através da sua participação, na terceira edição deste Festival.
*
Mergulha fundo, na sombra de um universo complexo. O olhar tímido perde-se na multidão de gestos incertos.
Cláudio Ferreira tem uma voz grave, e acompanha os movimentos concordantes de duas mãos, que pretendem complementar o significado de cada palavra falada.
As imagens fortes que captou, pertencem a um registo distinto ao qual não conseguiu fugir quando desafiado pela força de um olhar propositado.
Viver sem a imagem está fora dos seus planos. O seu caminho passa pelo envolvimento com a multidão, pela percepção das sensibilidades e pelo cruzamento das sombras frementes.
Sim, tudo isto podia não ter sido captado. Tudo isto podia permanecer na sombra de um corpo ausente. Ainda assim, não seria a mesma coisa.

terça-feira, 29 de novembro de 2011

Matemática

Num movimento brusco, atirou a borracha para o chão e inclinou-se para a apanhar.
 Sabia que a professora Catarina estava a escolher um aluno para ir ao quadro resolver um problema de matemática.
Demorou-se por debaixo da carteira. A julgar pela sua altura, certamente passava despercebida. Ou não.
“Isabel: ao quadro!”
“Pronto. Já foste…” – desabafou resignada, em confidência com os fantasmas matemáticos que a atormentavam na altura.
Claramente, a Matemática nunca foi o seu forte.
Para além de não conseguir reconhecer as vantagens de uma disciplina como aquela, tinha plena consciência, de que a liberdade para a resolução de problemas como aquele, era limitada e vinculada ao manual da época, que induzia o aluno a seguir um caminho, como se outros não houvesse.
Perdeu a criatividade, o espírito crítico, a capacidade de inventar e de resolver os problemas. Ainda que não a considerasse como uma das suas disciplinas favoritas, reconhecia a sua importância num mundo cada vez mais matematizado.
Hoje, sabe que a Matemática deverá ser encarada como um instrumento de compreensão e acção sobre a realidade.
Muito embora a pedagogia actual ainda preserve aspectos formais, de uma Matemática que privilegia o cálculo abstracto, o simbolismo e a abstracção pura, absolutamente desligadas da realidade e dos seus contextos socioculturais, construir cidadãos pensantes e preparados para o mundo real, deveria ser um dos objectivos de uma disciplina como esta.
A propósito da temática em causa, recordo uma reflexão de Piaget:
“Não são as matérias que ensinamos que os alunos não compreendem mas sim as lições que lhes damos”.
As mãos suavam. O pensamento estava congelado. Não sabia resolver o problema e a pressão imposta pelo olhar incisivo da professora, não ajudava.
Depois de ter permanecido dez minutos a olhar para um quadro, sem ter a chave para a resposta certa, regressou ao lugar.
A solução para o problema matemático ficou por deslindar. 
Restaram os olhares de um público passivo. O som das reguadas na mão pequenina. A aversão à Matemática.

Sons | Cheiros Lá dentro

O cheiro da escola era exactamente o mesmo.
A disposição das salas permaneceu inalterada. O chão de madeira carecia de remodelação e o corrimão verde-limão estava hoje quase sem cor.
Cuidadosamente, entrou num espaço que frequentou durante quatro anos.
Dentro daquela sala de aula, por cima do quadro de giz, permanecia o mesmo crucifixo. Deteve-se por instantes.
Religião e Moral. Na altura, o assunto era quase indiscutível. Ousar pensar, ousar questionar, não era um hábito para quem não pretendia dar a mão à palmatória.
Para além disso, a ideologia veiculada parecia fazer sentido. Só mais tarde percebeu as lacunas, de uma doutrina marcadamente amoral, cujo limite da legitimidade abraçava o passado de um homem que só não falhou, para quem não quis ver as suas falhas.
Aproximou-se da janela. Deixou-se levar ao som do vento, que beijava as árvores lá fora. Sentiu-se inquieta, à semelhança das folhas caducas, pintadas de um amarelo-torrado frágil.
Num movimento ligeiro, voltou a fixar o olhar nas carteiras de madeira escura.
As memórias surgiram em turbilhão.
De repente, voltou a ser a menina de outrora. Frágil. Dramaticamente obediente. Aterrada.
Lembrou a tensão perante os gritos em surdina, por parte da Professora Catarina; o entusiasmo ao perceber a “Língua Portuguesa” como tema de um Sumário minuciosamente descrito; o estratagema que inventava para não ir ao quadro resolver problemas de Matemática; os trinta minutos de um recreio passado a jogar às escondidas; os gestos preocupados da Josélia, uma funcionária sempre disponível para um abraço descomprometido.

Maré Vaza



Num sopro. Voltou a ter sete anos de idade.
As manhãs sempre foram dramáticas. Acordar tornava-se particularmente problemático, quando o que estava em causa era a interrupção de um sonho.
“Vá lá Isabel, já são horas… Não me faças perder a paciência!”
Sabia que a mãe fervia em pouca água. Insistir em permanecer deitada só ia piorar a situação. Espreguiçou-se ao comprido, na cama de casal, e encontrou forças para abandonar os lençóis.
A indumentária do dia já havia sido escolhida. A mãe adorava fazê-lo, mesmo depois de prever as discussões que poderia desencadear.
“Mãe, posso escolher a roupa para vestir hoje?” – perguntou acanhada.
“Tens cinco minutos!” – o tom de voz foi ríspido, mas percebeu-lhe o sorriso de soslaio.
De calças vermelhas, camisola amarela e gorro azul na cabeça, não podia estar mais confiante. Podia não ser a combinação perfeita, mas e depois?
A despreocupação de criança, rasgava em mil pedaços os preconceitos gastos, que povoam as mentalidades dos meninos crescidos. Vivia. Ao sabor da maré vaza.

Mãe do Canto

Mãe do Canto.
Conheceu o mundo a preto e branco e assistiu à evolução das mentalidades. Uma nova postura perante a vida se adivinhava, e ainda bem que assim o era.
Recorda as restrições que teve ao longo da adolescência. A rigidez das regras impostas pelos pais; os preceitos religiosos que respeitava meticulosamente, sem sequer se perguntar sobre o porquê de o fazer;  a voz estridente e claramente indignada de uma mãe que só queria o seu bem, mas que insistia em mostrar-lhe o lado indecente de um beijo; as promessas vazias de um sentimento que nunca conheceu.
Viveu durante grande parte da sua vida para cuidar da família. Foi mãe de três filhos que criou sozinha e a quem deu tudo o que tinha, e o que não tinha.
Os anos passaram.
Os filhos cresceram e foram forçados a sair do país. Um país que os enganou com promessas fáceis e que lhes roubou o chão.
Deixaram a Mãe. Naquele Canto. Aparecem esporadicamente, mas nunca para ficar. Abraçaram um país que lhes deu a vida com que sempre sonharam e compreendia bem isso.
Se pudesse tinha feito o mesmo. Agora já é tarde.
*
Olha para mim. Deixa voar os sonhos e só depois consegue dizer:
"Já não sei viver de outra maneira. O Natal é mais um dia. Sim, já teve sentido. Mas sempre foi o sentido errado."

sábado, 26 de novembro de 2011

“Que seja um bom Natal, para todos nós”


Parecia irónico. Nunca suportei aquela música mas naquele momento fez sentido.

Voltei a olhar para ela. As mãos enrugadas extraíam os poucos tostões que restavam na carteira azul petróleo. Suspirou. Retirou um volume de talões do Continente, cuidadosamente arquivados. Nas costas de um desses talões, começou a escrever. As mãos tremiam.
Não tinha pressa. Vivia sozinha. Daí não reagir bem a ruídos fortes. Respeitava o seu silêncio. Protegia-o.
Rumorejou entre dentes qualquer coisa que não consegui precisar. Depois descansou o olhar em mim e disse: «Este ano não há Natal».
Não lhe senti tristeza no olhar, nem queixume na voz. Estava claramente resignada, por um motivo que agora sei bem qual foi.