terça-feira, 29 de novembro de 2011

Sons | Cheiros Lá dentro

O cheiro da escola era exactamente o mesmo.
A disposição das salas permaneceu inalterada. O chão de madeira carecia de remodelação e o corrimão verde-limão estava hoje quase sem cor.
Cuidadosamente, entrou num espaço que frequentou durante quatro anos.
Dentro daquela sala de aula, por cima do quadro de giz, permanecia o mesmo crucifixo. Deteve-se por instantes.
Religião e Moral. Na altura, o assunto era quase indiscutível. Ousar pensar, ousar questionar, não era um hábito para quem não pretendia dar a mão à palmatória.
Para além disso, a ideologia veiculada parecia fazer sentido. Só mais tarde percebeu as lacunas, de uma doutrina marcadamente amoral, cujo limite da legitimidade abraçava o passado de um homem que só não falhou, para quem não quis ver as suas falhas.
Aproximou-se da janela. Deixou-se levar ao som do vento, que beijava as árvores lá fora. Sentiu-se inquieta, à semelhança das folhas caducas, pintadas de um amarelo-torrado frágil.
Num movimento ligeiro, voltou a fixar o olhar nas carteiras de madeira escura.
As memórias surgiram em turbilhão.
De repente, voltou a ser a menina de outrora. Frágil. Dramaticamente obediente. Aterrada.
Lembrou a tensão perante os gritos em surdina, por parte da Professora Catarina; o entusiasmo ao perceber a “Língua Portuguesa” como tema de um Sumário minuciosamente descrito; o estratagema que inventava para não ir ao quadro resolver problemas de Matemática; os trinta minutos de um recreio passado a jogar às escondidas; os gestos preocupados da Josélia, uma funcionária sempre disponível para um abraço descomprometido.

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